(apenas uma crônica, contada por um eu-lírico barbudão em algo como um acampamento hippie)
Várias estórias sobre como começou nosso universo costumam ser contadas de formas belas e fantásticas, de pais para filhos, por gerações, inspiradas pelas estrelas e constelações que avistamos aqui de baixo.
Mas uma delas se difere das outras, pois esta não é contada às crianças em volta de um acampamento ao som de acordes inocentes. Não é uma estória sobre seres mágicos ou onipotentes, e nem sobre grandes fenômenos inimagináveis para nós. Na verdade, é sobre algo que podemos facilmente compreender. É uma estória de paixão.
Talvez “compreender” não seja a palavra certa, mas sim, “reconhecer”. Podemos imaginar, ou chegar bem perto de visualizar, tal sentimento. E talvez, justamente por isso, é a estória que mais me convenceu até agora.
Diferente das estórias que meus pais e avós me contavam apontando para as estrelas, esta nunca me foi apresentada, e não aponta para nenhuma imensidão espacial, aponta simplesmente para dentro de nós. Caso se interessem, contá-la-ei para vocês agora.
Fala sobre duas entidades, que existiram antes da idéia de “existência” ser concebida. Elas não possuíam nome, pois tal conceito também não havia sido formado. Também não detinham forma, aparência ou personalidade, pois nada de fato existia. É difícil para nós abandonarmos tais conceitos, uma vez que sempre tenham existido neste universo, mas tente usar sua imaginação.
Nada de fato existia, e tudo se resumia nessas duas entidades, que também não possuíam nada. Ou, talvez, um conceito do que elas eram não exista para nós agora, em troca das idéias de forma, aparência e nome. Mas elas estavam lá, antes de tudo existir.
Essas existências amórficas ocupavam uma à outra, de forma cujas fronteiras não possuíam limites discerníveis, uma vez que o espaço em si estava esperando para ser concebido.
Elas apenas existiam, de uma forma a desafiar este próprio conceito, sem nada à sua volta e sem nada para considerar como si mesmas, além de uma à outra. A única coisa que tinham conhecimento como real, a única coisa que possuíam, era essa união.
E essa harmonia bastava. Sem desejos, sem a falta de nada, e sem ter nada. Estavam lá, e isso era tudo que formava o universo delas. Até que algo começou a mudar.
Nosso universo começou a se precipitar, e algumas idéias que serviriam de base para as outras que estariam por vir começaram a se formar: a primeira delas foi o Espaço.
Quando o Espaço começou a se fixar à volta dessas entidades, elas começaram a perceber gradualmente que estavam se separando, bem devagar. Talvez de fato nunca tivessem estado juntas, mas não existiam coisas como “distância” para perceberem isso.
Então, com o Espaço, viram que existia algo que as separava. E logo em seguida veio a Forma, dando contorno à suas existências. De repente, se tornaram seres individuais.
Muitas coisas ainda não existiam, e outras estavam começando a dar seus primeiros passos: em um certo momento, começaram a conhecer o conceito de Personalidade. Antes existiam com um único sentimento, agora passavam a pensar de formas diferentes.
Uma delas não gostava da idéia de Espaço e Forma, e queria voltar as coisas como eram antes. A outra estava atenta às mudanças, tentando entender o que estaria por vir.
Em algum momento, esta segunda percebeu: a única idéia que conheciam estava sumindo. Aquela idéia que bastou para elas por uma infinidade que o tempo nunca aprenderia a contar: o conceito de União.
Imediatamente, ficou aterrorizada. Não podia imaginar um universo sem a única coisa que fez parte dela, e ficou com medo do desconhecido. “Sem união, o quê existiria? Como seria?” De fato, a idéia de União estava se desfazendo para dar lugar a muitas outras novas que conhecemos atualmente. Não teríamos tal coisa neste universo.
Então, cruzou a distância até sua existência-irmã, o que pode ter levado inúmeras infinidades, mas por sorte o Tempo ainda não havia dado seus primeiros passos. Disse que temia nunca mais sentir aquela proximidade, mas a outra apenas chorava pelas mudanças, não conseguia ouvir o que lhe era dito. Então que, desesperada para confortá-la, e para se fazer ouvir, aquela entidade criou algo completamente novo, que permitiria que, mesmo existindo conceitos como Forma e Espaço entre elas, pudesse fazê-las sentirem-se próximas: o Abraço.
Aquilo confortou a outra entidade, e ela gostou da nova idéia. E então pode ouvir o que a existência que lhe abraçava tinha a dizer, e temeu que sem a União, aquele abraço não fosse trazer mais nada. Seu medo foi imensurável, e fez de tudo para trazer a outra existência mais para perto.
E foram se abraçaram cada vez mais forte, tentando sentirem-se mais perto do que o possível, apertando suas formas uma contra a outra cada vez mais intensamente. Queriam aquele sentimento de quando uma definia a existência da outra de volta. Queriam ser apenas um ser. Queriam vencer qualquer Espaço entre elas, ignorando qualquer Forma.
E cada vez mais se aproximaram, e se abraçaram tão intensamente que, de certa forma, tornaram-se apenas uma. Aquilo era maravilhoso, e elas não queriam que acabasse. Mas a idéia de União estava em seus últimos suspiros, e logo aquilo não seria mais nada.
Foi então que perceberam em si mesmas que não queriam existir num universo sem esse sentimento, sem estarem unidas. Num esforço inigualável, concluíram que poderiam continuar a existir sem precisarem uma da outra, ou poderiam acabar com sua existência enquanto ainda se completavam.
Entre lágrimas e abraços, escolheram a segunda opção. Iam deixar de existir, permitindo que suas Formas desfizessem-se no Espaço, enquanto ainda juntas, enquanto completas. E assim, foram morrendo.
Em seus momentos finais, uma idéia nova, que acabara de nascer, atingiu-as: o Nome. Para elas, que logo deixariam de ser, esse conceito era inútil. Não precisavam dele. Mas acharam que o que tinham merecia ser chamado de algo, e pensaram em um nome para todo aquele anseio por União, para o desejo de estarem juntas, para o êxtase de serem um só ser.
Pouco depois disso, suas existências acabaram. E o novo universo então se desequilibrou. Ele ainda não era autônomo o suficiente para perder tudo que definia ele antigamente, que eram aquelas duas entidades, e teve de lutar para se manter. Por fim, curiosamente, o universo achou uma solução: completou o vazio deixado pelos dois seres com a idéia de União.
Logo, o sacrifício dessas duas existências deu a oportunidade para esse conceito continuar existindo, e só assim, o universo continuou evoluindo, e se formando. Com o Tempo, novos seres com consciência para desfrutar da União deixada graças a esse sacrifício primordial foram tomando Forma.
Eu e você somos um desses novos seres, e podemos aproveitar dessa valiosa União que nos fora deixada tão dolorosa e valorosamente. Não a desperdicemos. Não a joguemos fora. Temos o Abraço para nos unir e saciar nossos desejos. Ó, que grande invenção esta que nos fora deixada!
Mas maior ainda é esse sentimento que temos, que nos faz desejar tanto estarmos juntos, cujo nome também nos fora deixado por esses dois seres que sabiam o que importava de verdade, acima de qualquer conceito.
Eu menti. Esta não é mais uma estória que explica as origens do universo. É uma estória sobre a origem dessa palavra que nos cerca nesse belo momento de união.
As duas entidades chamaram isso de Amor.
ReLapso: Bug Semanal
Há 6 anos
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